Resenha: Todo Dia a Mesma Noite

Título Original: Todo Dia a Mesma Noite - A História Não Contada da Boate Kiss
Autora: Daniela Arbex
Ano: 2018
Editora: Intrínseca
Páginas: 248
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A manhã do dia 27 de janeiro de 2013 é daquelas em que você se lembra exatamente o que estava fazendo, se for gaúcho pelo menos, como no 11 de setembro ou em alguma outra data marcante por alguma tragédia histórica. Esta era a noite do segundo incêndio com mais vítimas na história do Brasil, era a noite da tragédia na Boate Kiss

Naquela manhã eu estava em casa com meu filho recém-nascido e minha esposa, não liguei a TV quando acordei por algum motivo qualquer da recente paternidade, uma troca de fraldas ou um colo para encerrar um choro, não me lembro exatamente. Lembro que recebi uma ligação de meu pai, que da sua fazenda via o noticiário nacional, um plantão permanente que tirava do ar até mesmo os programas tradicionais da Rede Globo. Nas rádios do estado era a única coisa da qual se falava, lembro que ele me disse "Viu o que aconteceu em Santa Maria? Mais de 50 mortos numa boate que pegou fogo." Naquela noite trágica perdi 3 conhecidos, digo conhecidos por que não eram meus amigos próximos, mas a dor foi no estado inteiro, era uma das maiores tragédias do mundo, do Brasil e sem dúvida a maior de todos os tempos no Rio Grande do Sul.

Vidas jovens foram perdidas naquela noite, famílias perdiam filhos únicos ou até mesmo todos seus filhos, os corpos estavam em estados deploráveis ou somente pareciam dormir, já que as mortes ocorreram desde por queimaduras severas até apenas pela inalação da fumaça tóxica. O Rio Grande do Sul ainda não superou essa tragédia, leis foram criadas, mais cuidados estão ocorrendo para liberação de alvarás para todos estabelecimentos comerciais, mas o processo na justiça ainda corre, pessoas ainda não foram responsabilizadas como deveriam ser e a dor das famílias jamais acabará.

É sobre esse cenário que a jornalista Daniela Arbex escreve, escritora de dois livros maravilhosos e épicos, O Holocausto Brasileiro e Cova 312. O primeiro falando sobre a maneira como eram tratados pacientes em um hospício em Minas Gerais e o segundo sobre a ditadura militar, buscando a verdade por trás do corpo de um preso político, que tinha sua morte explicada como suicídio. Daniela conseguiu comprovar que a história era outra, alterando por fim o atestado de óbito do homem após várias décadas. Além disso, Daniela é premiada por diversas reportagens investigativas que já fez para os jornais nos quais trabalhou. 

Em Todo Dia a Mesma Noite ela conta a história de alguns jovens mortos naquela noite e de suas famílias, desde como foram os últimos momentos com seus entes queridos vivos, passando pela angústia em descobrir as desencontradas notícias sobre a tragédia e todos percalços vividos até descobrir se o nome deles constavam na lista dos sobreviventes ou na dos mortos. A autora termina seus capítulos falando sobre como essas famílias estão hoje em dia e o que fazem para superar essas perdas inestimáveis. 

Daniela é uma baita jornalista, competentíssima, investigativa, faz um livro recheado de detalhes, informações e consegue passar para as páginas toda a emoção que seus personagens viveram. O leitor sente toda a emoção e é impossível não chorar enquanto lê cada relato. Gosto muito de livros que contam a história do nosso país e a tragédia da Boate Kiss é uma página importantíssima e ainda recente para nós. Comprei o livro buscando informações sobre o que realmente aconteceu naquela noite e não propriamente sobre as famílias ou sobre a vida de quem faleceu.

Com isso em mente, analisando o texto que li, o mesmo gerou algum tipo de debate aqui. Estaria Daniela se aproveitando da tragédia para ganhar dinheiro com a dor de uma cidade inteira? Chegou a se levantar a hipótese de ela escrever o livro somente se sua distribuição fosse gratuita, coisa que acho abominável, já que ela empregou seu tempo e trabalho para fazê-lo e precisa sim receber por isso. Mas acho muito válida a discussão, falar sobre uma grande tragédia e remexer na dor de tantas famílias é apelativo? 

Sinceramente não vejo o livro desta forma, não acho que ela quis se promover em cima da história, até por que ela já tem a promoção que merece, é uma excelente jornalista, multipremiada na sua carreira e não precisaria sujeitar-se a esse tipo de trabalho, mas achei que determinadas coisas deixaram a desejar em um livro que deveria ser investigativo. Ela até fala sobre o processo que está correndo na justiça contra os donos da boate e possíveis responsáveis pela tragédia, como até cita o ex-prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, mas não vai afundo como nos seus outros dois livros. Ela não busca responsáveis, nem apresenta fatos investigativos que levem o leitor a chegar a sua própria conclusão. 

O início do livro conta como ocorreu o incêndio, como ele se alastrou, mas não fala minuciosamente da estrutura e de quais foram os principais elementos que provocaram as mortes. Fala de como algumas vidas foram salvas, mas não apresenta os principais heróis que entravam e saiam da boate a todo momento, se arriscando, para salvar o maior número de vidas possíveis. Para mim, o maior exemplo de que faltou mais aprofundamento em certos elementos são as poucas fotos presentes e de uma qualidade bem baixa, dificultando a visualização do que está sendo mostrado. 

Quando comprei o livro sabia o que ia encontrar nele e sabia que era, essencialmente, sobre histórias. Eu tinha acompanhado a polêmica sobre seu desenvolvimento e mesmo assim, ao fim acabei me decepcionando um pouco. Eu sabia que não seria tão imersivo como os demais, mas eu desejava isso dela, acho que ela poderia ser comparada à Ilana Casoy em seus outros livros, mas nesse não, nesse ela dá mais foco as mortes do que a investigação e isso me fez perder um pouco do gosto que estava pela escritora. Apesar disso o livro, ao que ele se propõe, é belo, os relatos são emocionantes, as histórias têm uma dinâmica perfeita e a sua narração é magnifica, desde o nome do livro que achei sensacional - e duvido que pudesse ser melhor -, até a sua capa e impressão são de um capricho que deixam outros tantos livros com inveja. O único "porém" da edição são mesmo as fotos, que realmente ficaram péssimas. 

Como o primeiro livro que fala sobre o caso, vi o mesmo como uma homenagem e sei que ele não é mais profundo muito provavelmente pela dificuldade de colher depoimentos de quem restou, seja de algum sobrevivente, seja de famílias que não quiseram falar ou até das autoridades e dos acusados. Daniela teve um trabalho árduo de conseguir quem a ajudasse a remexer nessa ferida que está longe de ser cicatrizada. A obra podia ser melhor, mas ela chega muito além do que qualquer um já havia conseguido falar sobre a tragédia, e fatos assim, precisam ser remexidas para serem sanadas, as feridas precisam passar por procedimentos médicos para depois fecharem, elas não fecham se você as esconde-las. 

Daniela está muito longe de ser uma oportunista, é uma das melhores jornalistas do país e faz um livro digno da sua capacidade, emocionante e cheio de baques para quem viveu de perto essa tragédia. Só ela conseguiu ser competente, deixando uma obra em tributo a alguns dos que se foram, contando um pouco das suas histórias. É exatamente isso que achei de Todo Dia a Mesma Noite, uma homenagem feita por alguém muito competente no que faz, contando algo que precisa ser contado e que precisa ficar gravado em todas as mídias, seja internet, televisão ou literatura.

Todo Dia a Mesma Noite é um livro pra saber mais sobre essa tragédia. É para você que não acompanhou tão de perto, quanto nós gaúchos, para você entender o que aconteceu naquela não tão distante noite, é para chorar, e muito, para homenagear quem se foi e principalmente, para que essa página triste não seja apagada da história do nosso país e que jamais aconteça novamente.

17 comentários

  1. Oi, Bruno.

    Esse sem dúvidas é um livro que emociona. Por diversas vezes, enquanto o lia, tentei me segurar, diante de tanta emoção, pois eu me coloquei ali, no lugar daqueles familiares. E, por vezes, não consegui segurar a emoção. Relembrar aquele fatídico, traz muita tristeza.

    No entanto, eu esperava mais desse livro. Porque, veja bem, na capa do livro, diz: "A história não contada da Boate Kiss". Até agora, me pergunto que história não contada é essa, pois não vi nada revelador, nada do que eu não já sabia. Exceto, como está o processo judicial. Enfim, na minha opinião, não foi um livro bem desenvolvido. Pelo contrário, é muito razo, mesmo contendo uma grande emoção.

    E, de forma alguma eu acho que a Daniela tirou proveito de toda a situação, querendo se auto promover. Na verdade, isso nem passou pela minha mente. Não sabia da polêmica em torno disso.

    Ah, e eu sinto muito por suas perdas!

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  2. Acredito que esta noite ainda esteja viva não só na mente de nós, que acompanhamos tudo que ia passando na tv ou internet na época, como principalmente aos familiares, amigos e sobreviventes dessa crueldade.
    Acordei com esta notícia na época, um amigo me ligou avisando e disse:crianças morreram.
    Nunca irei me esquecer disso.
    Também li isso, do trabalho da jornalista ser questionado, mas ela já fez seu nome, precisa de Ibope não. É uma jornalista séria, determinada e vai à fundo atrás das verdades escondidas!
    Está na lista de desejados e espero sinceramente, ler ele em breve.
    Beijo

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    1. Concordo com você, acredito que ela só quis revelar o lado das famílias e o impacto que a tragédia causou na vida dessas pessoas.

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  3. Oi Bruno,
    Por morar no RS, pude sentir de uma forma mais próxima o quanto essa tragédia chocou o mundo. E o sentimento de ter algo desse nível acontecendo próximo a você ou, ao menos, mais próximo do que qualquer outra grande tragédia não é só melancólico, mas estranho, como se não fosse real. Enquanto eu estava comemorando mais um ano de vida, muitos estavam a perdendo, por negligência e/ou irresponsabilidade de terceiros, no que era para ser (para muitos) o início de uma nova fase em suas vidas. Deve ser angustiante acompanhar o relatos dos familiares e amigos, que sofrem por uma perda que, talvez, nunca receba a justiça merecida. Entendo o motivo do debate em relação a publicação do livro, pois quem o analisa de uma forma mais impessoal pode achar que Daniela tenha se aproveitado de um momento tão delicado. Para mim a publicação dessa história é importante, pois mesmo que doa para os familiares, ela precisa ser contada, precisa ser lembrada para que não aconteça novamente. E mesmo que essa jornalista não tivesse escrito este livro, outra pessoa o faria.

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    1. Realmente Gi, foi um impacto para o Brasil, mas tenho certeza que o RS chorou junto com todas as pessoas próximas.

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  4. Que bacana este livro! Pra gente que mora longe e ficou sabendo da tragédia apenas pelo que as mídias (TV) disseram é uma ótima oportunidade para realmente entender o acontecido. Muitas vezes ficamos sabendo apenas de forma superficial das notícias, infelizmente. Não acredito que a escritora seja oportunista, alguém precisava mostrar para o resto do país, do mesmo jeito que o livro O Holocausto Brasileiro. Sinto muito pelas pessoas que você conhecia.

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  5. O livro deve ser muito interessante, pena que deixou faltando algo. Foi uma terrível tragedia o que aconteceu, impossível de ser esquecida, marcou a população, acompanhei pelo noticiário da TV. Muito triste e revoltante, fico imaginando as pessoas que perderam alguém lá, por mais que tentamos a dor deles é inimaginável. O livro deve mexer muito com as emoções do leitor e deixar reflexões sobre o ocorrido. Ainda não li nenhum livro da autora.

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  6. Olá, Bruno!
    Penso que todos ainda lembra do que aconteceu.
    Um dia muito triste, onde muitas vidas foram ceifadas.
    Se o nome do livro fosse apenas Todo Dia A Mesma Noite ficaria perfeito não precisa de um titulo longo.

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  7. Bruno!
    Ver um livro contar fatos verídicos, opiniões dass pessoas envolvidas no fato e como as famílias estão após tanto tempo do fato ocorrido, não acredito que seja jogada de marketing, acredito que seja a vontade de mostrar para todos como tudo aconteceu e o sofrimento envolvido. Ela é jornalista, deve relatar os fatos de forma isenta e isso traz mais credibilidade.
    Desejo uma semana repleta de realizações!
    “O que eu sinto eu não ajo. O que ajo não penso. O que penso não sinto. Do que sei sou ignorante. Do que sinto não ignoro. Não me entendo e ajo como se entendesse.” (Clarice Lispector)
    cheirinhos
    Rudy
    TOP COMENTARISTA JUNHO - 5 GANHADORES
    BLOG ALEGRIA DE VIVER E AMAR O QUE É BOM!

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  8. Oi Bruno, essa uma tragédia recente e acho que por isso o lançamento do livro pode levar a várias criticas, mas acho também que se as famílias dos jovens retratados no livro permitiram a ela fazer uso de suas imagens é porque queriam passar uma mensagem e assim não permitir que essa triste história fosse esquecida, e como a autora já tem uma bagagem bem profissional em seu currículo imagino que mesmo com as ressalvas que você citou na resenha, esse seja um livro importante e que deve ser lido. Achei a resenha muito boa, e interessante o fato que você citou nela, que em um livro anterior a autora conseguiu provar que uma morte que aconteceu na época da ditadura tida como suicídio na verdade tinha outra explicação, imagino que pra família dele tenha feito uma diferença incrível e isso só conta em favor do profissionalismo dela.

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  9. Esse com certeza é um livro forte, que emocionaria a todos que o lessem. Acompanhei pouco as noticias na época, mas me lembro que não falavam de outra noite. É desolador lembrar de todas as mortes que tivemos naquela noite. Eu não sei se leria o livro, acho que é forte demais, mas fico feliz em saber que foi escrito por uma ótima jornalista.

    Beijos, Gabi
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  10. Oi Bruno!
    Já ouvi flar do livro mas é a primeira resenha que leio sobre, que história triste, foram perdas lamentáveis, difícil de esquecer essa noite viu...
    Vou ad nos desejados tenho mto interesse de entender melhor...
    Bjs!

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  11. Não sabia da existência desse livro e com certeza quero ler. Essa tragédia realmente deixou um país inteiro triste sentindo a dor dos familiares e amigos e acho que ler esse livro é voltar pra essa tragédia por isso pretendo me preparar antes de lê-lo. Contar as histórias das vitimas com certeza deve ter mexido muito com a autora, ela está de parabéns pela coragem de escrever esse livro.

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  12. Oi Bruno,
    Eu tenho uma curiosidade enorme nesse livro, lembro da tragédia, e mesmo que tenha sido distante de mim, não tem como negar, o país todo sentiu essa dor enorme... Eu gostaria sim de saber mais sobre como o caso está correndo na justiça (na verdade não sei se ele já chegou a ser finalizado) como os responsáveis serão penalizados, e entendo que não deve ter sido nada fácil conseguiu informações para essa escrita. Não é fácil falar de feridas que jamais fecharão, mas é como disse, acabou se tornando uma homenagem para aqueles que se foram! Eu pretendo ler, na verdade achei também interessante os outros livros que citou da autora/jornalista e vou procurá-los.
    Beijos

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    1. Recomendados o trabalho da jornalista. Tenho certeza que você após conhecer, também vai concordar que ambos os trabalhos foram primorosos e extremo cuidado e empatia. Beijos

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  13. Como não lembrar dessa tragédia e as famílias. Foi algo triste que abalou o país. Acho importante um livro retratar certos fatos acontecidos, exatamente para não serem esquecidos ou ficar apenas na opinião da mìdia.

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    1. Principalmente aqui no Brasil que assim como uma tragédia surge, ela some sem ao menos as pessoas questionarem o porquê.

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